Tá difícil entender como tudo aconteceu. De repente, a
saudade me faz voltar ao tempo em que vivemos as mesmas dificuldades e
angustias e porque não esparsas alegrias conquistadas pelo convívio de seus
atores. Tínhamos uma mãe que nos amava
por atitudes, nem sempre por gestos ou palavras, mas no cuidar, principalmente
no enfrentamento dos males acometidos na infância, quando ficava rezando e
cuidando pra que nada acontecesse com seus filhos. Quantas vezes tivemos o
privilégio de ter uma mãe cuidando para que o mal não nos abatesse. Era ela a
guardiã de nosso sono, no controle das febres e nos banhos de imersão. O seu
amor transcendia e se repartia para atender os filhos.
Você foi o sexto dos dez irmãos. Era muito tímido e, lembro-me
quanto medo eu tinha que você se perdesse quando saíamos juntos. Nossa mãe
sempre trazia outro filho nos braços e você, quase sempre, vinha sendo puxado
por meu pai ou pela irmã mais velha. Você
foi o primeiro homem, depois de cinco irmãs, e nem por isso foi poupado da
rigidez paterna, culturalmente natural na época, e que só o tempo tratou de nos
mostrar o porquê, diante das dificuldades que a família vivia. Nós dois, em
tempos diversos, nos reconciliamos com o passado e aprendemos a admirar aquele
que viveu para cuidar de todos nós. Restitui a figura do pai herói depois que,
já adulta, conseguir entender com maior clareza os seus motivos e conduta. Grande
pai!
Lembro-me de levá-lo à escola no seu primeiro dia de aula. Era
uma criança carregando outra pela mão. Minha mãe estava cuidando dos menores,
as mais velhas trabalhavam ou estudavam em horário diverso do nosso, e a
responsabilidade coube a mim. Fui puxando você até a sua sala de aula. Você não
queria entrar, não queria sentar, até que a freira fez você sentar. Sai com o
coração na mão de vê-lo tão abandonado, a mercê de uma classe que considerava
inimiga. Você custou a se adaptar e deve ter sofrido muito.
O tempo passou e quando, eu estava lecionando, lhe falei
sobre um concurso para, na época, auxiliar de secretaria da escola estadual;
você concordou. Foi aprovado e, talvez, a partir daí, você tenha se libertado
das amarras que lhe aprisionavam na timidez de seu corpo. Ao longo do tempo todas
as dificuldades físicas foram superadas e surgiu o Zé Secretário. Esse
envolvimento mais radical, a dedicação sem medida e a roda no barzinho com os
amigos rendeu a nossa mãe, rezas e preocupações.
Você, Zé Secretário era marrento, aprendeu com a vida a lutar
pelos seus direitos e tinha sonhos esquerdistas de se opor ao governo
repressor. O Zé secretário das lutas sociais, das paralisações, da cervejinha
com os amigos, do confronto. O Zé que participava das ações que acreditava.
Filiou-se ao partido dos trabalhadores, onde foi um companheiro incansável de
luta. Acredito que hoje, o partido perde o seu mais fiel companheiro.
Confesso que, mesmo tendo os mesmos ideais de um país mais
igualitário, as nossas visões de mundo não combinavam. Não compactuava do
radicalismo de suas ideias e as formas de resolver as questões sociais e
políticas, às vezes de forma mais agressiva e passional, mas isso nunca
diminuiu em nada o amor de irmãos. Esse que se preserva no coração e nem a ação
do tempo ou as vicissitudes da vida consegue apagar.
Hoje, com o distanciamento do tempo, arrisco a dizer que me
pareço muito com você. Sempre gostei de escrever textos e poesias sociais e
políticos onde imprimia a minha revolta contra o regime em pauta, mas nunca me
filiei a qualquer partido. Participei de greves da categoria, mas nunca empunhei
bandeira ou participei de confronto político e quando percebi que nem todos
aceitavam opiniões e pensamentos divergentes e que, em muitos casos, isto era
motivo de término de amizade pessoal ou familiar, priorizei minhas ações.
Prefiro colecionar amigos e família a perdê-los por ser contrária e divergente
nas opiniões. Afinal, cada um tem no pensamento e no coração as suas próprias
crenças e opiniões e já passou a minha fase de ideologia de lutas pelos
oprimidos, prefiro ações mais pontuais e concretas.
Há muito desisti de por no
papel o que penso e acredito. Hoje, elejo o silêncio como meu companheiro de
luta e a desilusão por toda classe política me faz ficar longe de qualquer
pensamento mais radical de luta. Penso que é no voto que o brasileiro vai poder
se rebelar e mostrar a que veio. Eu evitava discutir isto com você, sabia que
não concordaria comigo.
Outra coisa que nos assemelhava era gostar de escrever. Neste "querer literário" me parecia com você. É claro que a sua verve literária nada se
compara com a forma tacanha que me expresso em prosa ou verso. Você, Zé
literário, é um autor introspectivo, detalhista e até, muitas vezes, de difícil
compreensão, devido à maneira tão própria de se expressar. Seus versos são
marcados por dilemas de uma adolescência sofrida e a resposta, muitas vezes
agressiva, de incompreensão e rebeldia. Seus contos e livros, fictícios ou não,
retratam vocabulários rebuscados, nem sempre usados no dia a dia, mas que
denotam um autor de capacidade intelectual acima do normal. Mas, com certeza,
se analisado por escritores de renome, estará na lista de grandes autores.
Mas, fomos parecidos em muita coisa: na timidez quando
criança e adolescente, nos “bullying” sofridos na escola, no surgimento da
vontade política de ajudar o mundo, no comprometimento literário e de sempre
retornar as raízes familiares e procurar a compreensão da nossa história. Na
verdade, irmão, tínhamos os mesmos sonhos, mas não o mesmo modo de agir. Éramos
semelhantes no amor pela família e nos conceitos éticos e morais transmitidos
por nosso pai. Não faltávamos nos Natais e festas e reuniões familiares na casa
de nossos pais, mesmo quando o Natal passou a ser em minha casa, você fazia questão de estar
presente.
Havia respeito entre nós em relação à família e religião. O seu
ceticismo em relação às regras pré-estabelecidas, não o impediu de constituir
família, ter filho e ser um pai exemplar. Quando a infelicidade bateu a nossa
porta, com a perda de nossos pais e de nossa irmã que tanto sofreu, o
sofrimento nos uniu e deixou ainda mais forte os laços que existiam entre todos
nós. Éramos dez e agora somos oito, mas continuamos dez em nossos pensamentos.
O que mais me incomodava, era o fato de você dizer que não
acreditava em Deus. Era ateu. Você foi criado no lar estritamente religioso,
foi batizado, crismado, fez sua primeira comunhão e foi coroinha nas missas de
domingo. Não sei quando você deixou de acreditar em Deus, mas sempre vi em seus
atos, a presença dos ensinamentos cristãos. Jesus pediu para amarmos uns aos
outros, como Ele nos amou. E você seguiu a risca esse ensinamento: amou seus
irmãos, acreditou nos amigos, tentou melhorar a vida do brasileiro. Foi honesto,
corajoso e revolucionário das causas sociais. O seu ceticismo religioso, não o
fazia materialista, mas o fazia um defensor de suas ideias ateístas. Hoje,
perdi um irmão e a sociedade perdeu um defensor das causas que acreditava.
Se me distanciei de você por nossas atitudes conflitantes,
não me distanciei de você no meu coração. No coração, você continuou a ser o
mesmo menino que eu tinha medo que se perdesse quando saíamos com a família
para passear. Aquele que eu queria ajudar, mas que muitas vezes não concordava
com suas opções e com o modo radical com que encarava a sua vida.
No meu pensamento, você foi para o Céu e lá, ao se encontrar
com Deus, ainda sem acreditar na vida após a morte, verá o Criador que lhe
dirigirá a palavra:
- Seja bem vindo, companheiro!
- O que faço aqui? – responderá incrédulo.
O Senhor, que sempre é misericordioso, dirá:
-José Benedito de Oliveira Araujo, há tempo você diz que não
acredita em Deus, mas Eu nunca deixei de acreditar em você.