Turbulências
O dia, até
então, estava maravilhoso. A tarde inteira no motel e a noite um filminho para
relaxar: Atração Fatal. A história de uma amante que em um ato de loucura, ao
se sentir rejeitada, inferniza a vida do amante e de sua esposa até destruí-la
completamente.
O filme tinha
mexido com o casal, talvez pelas coincidências entre a realidade dos dois e a
ficção do cinema. No filme, o personagem principal era casado, feliz no
casamento e se envolvia com outra mulher, mas as semelhanças paravam aí. Na
vida real, Mara e Cadu eram amantes já há algum tempo e nunca houve ciúmes
entre eles, diferentemente da ficção. Mara sempre soubera que seria assim. O
pacto era este: Cadu já era casado quando a conheceu, tinha uma esposa e com
quem sonhava em ter filhos. A família era sagrada, mas o prazer e a alegria eram
da amante. Ela aceitara essa situação com certo ar de superioridade, pois os
momentos melhores ficaram para ela; a traída, a enganada, era a esposa. Por que
a sensação de ser a única que estava perdendo?
- Se isso acontecesse comigo, não deixaria “pedra sobre pedra”. Ela
estava esperando um filho dele. Ele deveria ter mais consideração. – falou com
veemência se referindo ao filme.
Cadu sentiu
um mal-estar, um friozinho “dos pés a cabeça”. Por que esse comentário infeliz
neste momento? Uma ameaça?
- Não fique
nervosa, é apenas um filme. Não vamos brigar por causa disso.
-Não estou
nervosa, Cadu. Você é que ficou impressionado e está nervoso. Por acaso a
“carapuça” lhe serviu?
“Droga de
Filme”. - pensou Cadu com seus botões. Ali estava ele sendo pressionado pela
amante, no dia em que completavam três anos de muito amor e compreensão. Deu-se
um silêncio fora de hora no apartamento, ambos pensavam no filme sob óticas
diferentes: Cadu nas consequências que a aventura fora do casamento causou ao
personagem do filme e Mara na amante do filme e na tragicidade do desfecho.
- É uma pena
que o filme acabou com o seu bom humor. – disparou Cadu.
- Ninguém
está nervosa aqui. Vamos conversar mais um pouco.
- Estou com
muito trabalho pra fazer. É melhor deixar pra outra hora.
- Hoje é
sábado. Você não trabalha.
-Trouxe
serviço pra fazer em casa. Até mais, amor. Amanhã, eu lhe telefono. Durma bem.
Mara ficou
apreensiva. Nestes três anos de convivência, o sábado sempre fora dela; a
mulher “oficial” achava que o marido trabalhava no sábado. Ele estava mentindo,
estava fugindo da conversa e alguma coisa estava errada. Ela foi para cama, mas
demorou a dormir. Quando dormiu, sonhou com o amante a traindo com outra e mesmo
com a própria esposa. Em seu sonho, a esposa de Cadu sabia que ela existia e
ria com o marido pelo tempo que Mara perdeu sendo a amante, pelos filhos que ela
deixou de ter, pelas oportunidades que deixou para trás. Os dois, a esposa e
Cadu, se amavam e falavam dela com desprezo. Acordou assustada. A imagem de ser
a preterida, de estar sendo traída não lhe dera trégua. Sentiu ódio dos dois:
da esposa e do amante.
- Como fui
ingênua em não perceber o que estava se passando. Isso não vai ficar assim. Filhos
da mãe! – bradou alto.
---
Cadu, na
noite anterior, voltara cedo para casa. Lucy, a esposa, estranhou:
- Voltou
cedo! O que você traz aí, querido? – falou apontando para o filme que ele
trazia nas mãos.
- Ah. É um
filme que trouxe pra vermos juntos. Mas, já me disseram que não é bom e que não
vale a pena.
- Vamos
assisti-lo mesmo assim, querido. Vou fazer um pouco de pipoca. Faz tempo que
não vemos “um filminho” juntos.
Era a segunda
vez, em um curto espaço de tempo, que via o filme e com mulheres diferentes. O
filme rolava na tela e Cadu suava frio. Nunca um “the end” fora tão aguardado.
O comentário de Lucy em nada ajudou a situação:
- Puxa, que
filme! Não sei o que faria nessa situação. Só tenho a certeza que se fosse a
esposa nunca perdoaria o marido. Matava os dois. Os dois iriam “arder no
inferno”.
Na verdade,
nunca vira Lucy tão agressiva. Ela sempre fora recatada, com boas maneiras.
Nunca havia se exaltado.
- Você está
perturbada.
- É claro que
não. Estou só brincando. Vamos dormir. Amanhã, vamos à casa de meus pais. Você está suando frio. O filme lhe
impressionou muito!
Cadu também
não teve uma noite tranquila. Sonhou com a amante com uma faca vindo em sua
direção e também com a esposa lhe colocando pra fora de sua casa com “duas
pedras na mão”. Respirou aliviado ao acordar.
A visita aos
sogros não melhorara seu estado de espírito, que bom que o dia estava acabando.
Enquanto a esposa dormia ao seu lado no carro, Cadu pensava na vida. Arrumara
uma amante por acaso, não por amor. Afinal, ela era linda, sensual e sem
complicações, mas, amor era o que sentia pela esposa, aquela que dormia ao seu
lado.
No dia
seguinte, foi para o serviço disposto a por um ponto final naquela história.
Mas, sentada no sofá da sala de espera, Mara o esperava. Seu coração disparou:
“Igualzinho a
cena do filme quando a amante vai procurá-lo no trabalho”. - pensou meio
desorientado.
- O que você
está fazendo aqui? –a voz de Cadu saiu meio agressiva.
- Você não
ligou e por isso estou aqui. Precisamos conversar. Acho que o filme mexeu com
nossa relação. O filme serviu para que eu refletisse que não passo de uma
aventura. Não ofereço riscos a sua vida, não reclamo e lhe dou prazer. Mas eu
existo, tenho meus sonhos e quero ser feliz plenamente; vim até aqui para
deixar clara a minha posição. A forma como você se comportou ontem, me fez
perceber que serei sempre a amante me contentando com as sobras e ninguém
merece isso. Passe bem.
- Por que
essa agora? Nunca tivemos problemas. Mas, se preferir assim, tudo bem. Vamos parar
por aqui, antes que alguém se machuque.
Falou meio
sem pensar. Era melhor aproveitar a oportunidade e terminar logo, antes de um
fim mais trágico. Mara continuou:
- Ah! Ia me
esquecendo. Deixei um presentinho para sua esposa. Ela merece por não me
respeitar, ter feito “chacota” de mim. Vocês se merecem.
Saiu decepcionada,
batendo a porta. Por um segundo, achou que Cadu fosse implorar para que não
fosse embora, mas ele lhe pareceu aliviado.
Cadu não
entendeu o porquê do comentário sobre a esposa, mas não era hora de pedir
explicações, pois não queria deixar Mara nervosa. Livrara-se da amante
possessiva e das ameaças de morte. Agora podia viver feliz com a esposa.
---
Em casa, Lucy
ouviu a campainha tocar, foi atender a porta e encontrou um pacote no chão. Não
havia tempo para abri-lo agora. Precisava pensar em uma vingança. Nunca pensara
em trair o marido, mas...
A gota d’água
foi o telefonema que ela havia recebido de manhã e que, a princípio, não
entendeu nada, mas depois concluiu que estava sendo traída Há muito tempo
desconfiava do marido, sempre soubera que ele não trabalhava aos sábados e
mentia a ela. Agora tinha certeza: o marido tinha uma amante desequilibrada. De
manhã, esta lhe havia telefonado e, sem lhe deixar falar, foi berrando:
- O fato de
ser a mulher legítima, não lhe dá o direito de rir da minha cara. Aceita a
traição de seu marido e ainda “pisoteia”. Você é uma filha da mãe. Eu sou a
amante de seu marido. Você é a esposa, mas não tem dignidade alguma.
Lucy não
respondeu às agressões. Afinal era uma mulher de classe, não era chegada a “dar
barracos”. Desligou o telefone, mas sentiu que havia verdade naquelas palavras.
Sentiu ódio do marido por colocá-la naquela situação. Agora queria vingança. O
amor pelo marido se fora nos sábados e na indiferença dele. Pois bem, ela
também teria um amante.
---
Cadu foi para
casa; estava preocupado. O que a amante teria lhe aprontado? Viu o pacote sobre
a mesa, mas estava intacto. Abriu o pacote com receio, mas era uma fita
gravada. Preparou-se para ouvi-la. A voz da amante tomou conta do ambiente.
-Vocês se
merecem. Descobri que sou motivo de riso de ambos. O que posso dizer de uma
esposa que sabe da traição do marido e, mesmo assim, aceita e compartilha dessa
farsa? Saio de cena e pronta para viver uma nova história, enquanto vocês serão
infelizes e dignos de pena.
Ele não
entendeu nada do que Mara tinha dito na fita. Ela não conhecia Lucy. Tentou se
comunicar com a esposa por telefone:
- Querida,
estou cheio de novidades. Não vou mais trabalhar aos sábados. Hoje, vou tirar à
tarde para ficar com você, quero curtir mais a minha esposinha.
-Desculpe meu
amor, mas estou ocupada a tarde toda. Combinei um cinema com uma amiga. E
quanto aos sábados, eu faço um curso sobre nutrição aos sábados.
-Tá bem. Depois
a gente conversa pessoalmente.
Estava
decepcionado. Agora que tinha os sábados livres, a mulher não podia estar com
ele. Só lhe restava um cineminha fora de hora.
---
Lucy chegara
ao cinema com Alex, o rapaz que sempre a convidava para sair e ela sempre
recusava. Agora não, era sua vez. Estava feliz como uma colegial.
- Que filme
vamos assistir?
- Atração
fatal.
De novo
aquele filme, o responsável por estar ali, mas era apenas um filme...
As luzes já
estavam apagadas quando Cadu chegou ao cinema. Estava tão preocupado com a
conversa que teve com Lucy que nem olhou o nome do filme em cartaz.
Na tela, aparece o título do filme: “Atração Fatal”.
-NÃO....De
novo o mesmo filme...
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