segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Revezes da vida


Revezes da vida

Seu nome era Marina. Mulata, bonita, mas, como ela sempre dizia, tinha um defeito que a acompanhara como um estigma: ela era pobre. Os ombros encolhidos denunciavam o complexo de inferioridade que a acompanhou durante os primeiros anos de vida. Tinham ficado no passado os dias de meninices dos primeiros anos, mas o olhar baixo, embora agressivo, denunciava o sofrimento pelo qual passara.  
Ao recordar sua infância chegava à conclusão que não tinha sido feliz. Não que a família tivesse passado por muitas dificuldades ou que fosse vítima de maus tratos. Possuía uma família feliz. Era filha única e seus pais sempre trabalharam muito para lhe dar o suficiente para uma vida confortável e digna e por ela fizeram os maiores sacrifícios, mas o seu próprio preconceito sempre a perseguira. Preconceito por ser pobre, por andar mal vestida e não pertencer à mesma classe social de seus colegas. Não estava inserida no mundo que a rodeava. Nunca se aceitou e, muitas vezes, sentiu inveja da mãe e, ao mesmo tempo, raiva. Inveja, por ela ter sido rica e raiva por ter abandonado tudo para se casar com um homem pobre.
- Se eu fosse rica. - dizia Marina aos pais. Todos seriam meus amigos de verdade.
- Há coisas mais importantes que dinheiro. – rebatia a mãe.
Não, não havia. Quando criança, com a ingenuidade própria da idade, ela acreditava que tudo era possível. Mas, aos poucos, os próprios pais foram percebendo que havia um preconceito velado em relação à filha na escola onde estudava. Primeiro, o preconceito da própria professora da primeira série que a deixava de lado nas principais atividades e comemorações da classe. Ela nunca era chamada para cantar, dançar ou representar a classe. Parecia possuir uma doença contagiosa que a impedia de participar do grupo. Alguns pais preferiam que seus filhos não se relacionassem com a filha dos funcionários; sentiam-se constrangidos com a presença de Marina junto a seus filhos.  Eles não aceitavam Marina, não perdoavam aquela intromissão.  Era como se estudasse “de favor” e que a condição social fosse um abismo entre ela e seus colegas de classe. E, assim, Marina adquiriu uma repulsa quanto a sua condição social. Graças ao discernimento da direção, professores e alguns pais, tudo foi contornado. Afinal, os pais de Marina trabalhavam na escola e eram muito queridos por todos que os conheciam. Dona Irene trabalhava como zeladora e Seu Raul era inspetor de alunos. Por isso, Marina ganhara bolsa de estudos.
Aos poucos, Marina foi conquistando o respeito e garantindo as melhores notas, mas no silêncio do quarto o seu travesseiro era companheiro inseparável de suas lágrimas e solidão. Por inúmeras vezes perguntava a mãe porque ela estudava em escola particular, se eram pobres. A resposta não a convencia.
- Eu trabalho aqui. Você tem o melhor estudo do mundo, filha. O seu futuro será bem diferente do meu.
Irene percebia a tristeza da filha e também sofria. Era o preço que pagava ter enfrentado a família e casado com um rapaz de poucos recursos. Raul pouco falava, parecia carregar nos ombros a culpa pelo sofrimento da filha. Afinal, ele sempre fora pobre. Raul e Irene conseguiram uma vaga na zeladoria do colégio desde a primeira série de Marina e, assim, a filha pôde estudar de graça no colégio particular. Tudo que ganhavam era para os estudos da filha. A maior parte, estava sendo guardada para a Universidade. Irene sempre dizia que Marina concluiria seus estudos, coisa que ela não fez.  
A menina desde cedo teve que se virar sozinha. Para sobreviver no espaço escolar, criou uma couraça que a blindava dos possíveis relacionamentos. Assim que as aulas terminavam corria para a rua para se encontrar com seus amigos de verdade: os meninos do bairro e ali passava horas a empinar pipas e jogar bolinha de gude. Cresceu moleca e detestando tudo que lembrasse laços de fita.  
A adolescência chegara e Marina não via grandes possibilidades de ascensão social. Terminou o Ensino Fundamental e nem da formatura ela participou.
“Não vou deixar ninguém zombar de mim”. – pensou na defensiva.
No Ensino Médio, ela percebeu que algo mudara. Milagrosamente, todos a receberam bem. Marina não tinha percebido que o “patinho feio” estava se transformando em um “lindo cisne”. Os lábios carnudos que sempre a fizeram sofrer, agora era motivo de admiração por parte dos colegas de classe. Alta, esguia e “mulatamente” brejeira, arrancava suspiro e crescia o número de seus admiradores. Mesmo assim, Marina tremia e as inseguranças do tempo de infância não a deixavam em paz. O convívio com os colegas venceu as últimas barreiras e, em pouco tempo, já se sentia parte da turma.
E foi assim, que Marina se apaixonou por Pedro, o queridinho da classe. Pedro o rapaz carismático, dono de voz aveludada, que tocava violão e era o preferido entre as meninas do colégio. Naquele dia, depois de um jogo de basquete masculino, os olhos de ambos se encontraram no caminho para o vestiário antes do jogo. Marina sentiu as pernas bambas, o coração acelerado parecendo sair de seu peito. Pedro a olhou, sorriu e foi isso que a encantou: o sorriso. Para ele, nada de novo, apenas, um olhar a mais. Para ela a certeza que o mundo rosa se deslumbrava em seu destino.
Pedro parecia não perceber as investidas sutis de Marina e, no final do ano, ele já estava namorando a garota mais bonita do colégio: Camila. Marina ficou arrasada. Resolveu esquecer Pedro e todas as expectativas em relação ao amor. Ninguém ia namorar uma pequena, irremediavelmente, pobre. Os rapazes que a procuravam eram olhados com desdém. As amigas a encorajavam:
-Marina, olha quem está olhando pra você! Dê uma chance pro Renato. 
- O Renato é pobre como eu. Tô dispensando! – respondeu Marina e assim foi dispensando um a um os que tentavam se aproximar.
O dia da formatura do Ensino Médio chegara e Marina estava linda. Ganhara o vestido de presente da madrinha. Era todo branco e realçava o seu colo moreno. Fizera escova nos cabelos e no lugar dos cachos negros, que encantavam seus pais, surgira um cabelo liso e brilhante que também lhe ficara muito bem. Todos olharam admirados quando o pai a conduziu pelo centro do salão. Pedro também a olhou demoradamente por detrás dos cabelos de Camila, sua namorada.
Marina elegantemente valsou pelo salão com o pai. Depois foi a vez de Renato a convidar para dançar e ela aceitou a contragosto.  Por diversas vezes, os olhares de Pedro e Marina se cruzaram na pista. Renato percebeu o interesse:
-Marina! Quem está dançando com você, sou eu. –irritado, Renato a deixou o salão. Marina nem se importou, pois para ela só Pedro existia.
Depois da formatura, não mais encontrou os rapazes, ela não freqüentava os mesmos ambientes de ambos. Mas, entre um livro e outro, a imagem de Pedro e Renato ocuparam seus pensamentos. Pedro, o rapaz mais lindo do mundo, e Renato, o rapaz que todos queriam que ela aceitasse. Marina percebia que até seus pais torciam por ele.
-E aquele rapaz, que estava na festa de formatura. Você não vai namorá-lo? Formam um lindo casal. – disse-lhe a mãe enquanto conversavam.
- Não. Renato é pobre. Vive “numa pindaíba só”.
-Marina, como pode dizer uma coisa dessas!
-Deixa pra lá. É melhor não discutir. Você não vai entender. Não pensou em mim quando casou com papai.
A mãe chorou às escondidas. Tinha falhado na educação da filha. Ela tinha horror a ser pobre.  Horror às suas origens.
 Assim o tempo acertou as arestas e diminuiu os ressentimentos. O primeiro dia de aula de Marina como universitária chegou. Ela escolheu Psicologia, talvez por sentir necessidade de autoconhecimento. E foi na Universidade que reencontrou Renato e Pedro. Os dois estudavam Engenharia. Sentiu a mesma emoção de antes: o frio na barriga por Pedro e a aversão por Renato. Ambos sorriram e vieram ao seu encontro. Foi Pedro quem falou primeiro:
-Que bom vê-la de novo. Precisamos marcar um encontro. Camila também estuda aqui. Ela gostará de lhe ver.
As palavras de Pedro foi “uma balde” de água fria. Renato nada disse, mas parecia satisfeito pelo encontro.                           
Os encontros se repetiram e a saída dos quatro se tornou constante. Era difícil para ela ver Camila aos beijos com Pedro. Com o tempo, o casal começou a se distanciar; só lhe restou Renato. Marina só não o dispensou porque ele a levava a barzinhos, passeios e baladas. Renato comprara um carro.
Mas, um dia, depois de um programa rotineiro, Renato lhe pediu em namoro:
-Marina, faz tempo que estamos saindo juntos. Quer namorar comigo?
Não havia como dizer não, ele se tornara imprescindível para suas aspirações. Não agora que necessitava de sua companhia. Ela precisava de um rapaz com carro para frequentar lugares elegantes.
Dona Irene ficou muito feliz, agora Marina tinha tomado juízo:
-Agora ela será feliz. Renato é um bom moço. –argumentou Irene.
-Não acredito nas boas intenções de nossa filha. - rebateu Raul.
 A vida tinha ensinado a Raul a não acreditar em contos de fadas. Marina era preconceituosa, nunca aceitara sua posição social e não estava com Renato por amor. Era só interesse.
- Tudo que me acontece é porque sou pobre. Pobreza chama pobreza. É um “carma”. A senhora tinha que se casar com um pobre. Adoro meu pai, mas ele é pobre. - chorava Marina em casa para a mãe.
- Você “cospe no prato” que comeu. – dizia Irene.
-Casar e morar aqui? Nunca... Jamais. – rebelava-se ela.
Nunca dissera a Renato a aversão quanto a sua pobreza e talvez, por isso, ele sempre a queria de volta:
-Marina... Fomos feitos um para o outro. Quer casar comigo?
-É muito cedo. Não quero me casar agora. - desconversava.
Renato resolveu se afastar. Amava Marina, mas não queria se humilhar. O namoro foi desfeito. Deprimida e sem perspectiva de vida melhor, Marina trancara sua matrícula na Universidade e largara o emprego na secretaria da escola, para decepção de seus pais. O sonho de ambos era ver a filha formada e agora...
Foi a vez de Raul dar uma lição na filha:
- Agora é assim... Se quiser permanecer ao nosso lado, a regra é essa: você vai trabalhar para sustentar a sua vida. Nem conseguiu se formar. Nós fomos responsáveis pelo que você se tornou. Sempre lhe tratamos como uma princesa, mas sempre é tempo para mudar. –concluiu Raul.
Não teve outro jeito, ela não tinha para onde ir. Passava os dias, fechada em seu quarto, sentindo-se a pior das criaturas. Pelo menos, houve tempo suficiente para por as idéias em ordem.
Os meses foram passando e a vida voltou ao normal. Marina arrumou um emprego como estagiária em uma clínica de psicologia e reabriu sua matrícula na Universidade. Os pais pouco conversavam com ela, principalmente Raul que não mais lhe dirigiu a palavra.
O que mais a incomodava era o fato de que sentia falta de Renato. Sentia falta de seu carinho e de sua atenção. Encontrou-o, certa vez, perto da Universidade, conversando com uma moça bonita e sentiu ciúmes. Pela primeira vez, se sentiu ameaçada, Renato parecia interessado na companhia da moça. A cena a perseguiu durante dias e resolveu procurá-lo:
-Renato! Estou sentindo muito a sua falta. Me perdoe.
- Não há o que perdoar. Você pra mim não faz diferença.
Marina sabia que merecia aquele tratamento. Precisava reconquistá-lo e como sabia onde ele estava trabalhando, sempre que possível, dava um jeito de encontrá-lo. O coração batia forte e ela percebeu que estava apaixonada pelo rapaz de origem pobre e que tanto desprezara. Um encontro ali, outro aqui e logo estavam reatando o namoro.
A vida estava lhe dando nova chance. Aos poucos, Marina reconquistara o carinho da mãe e até do pai. Mas a aversão à pobreza continuava.
- Só caso se morar em uma casa grande, bonita, mesmo que seja de aluguel.
-Tudo bem. Farei sua vontade. – disse Renato. Ele amava Marina e faria qualquer sacrifício.
O casamento aconteceu anos depois, já com a família totalmente reconciliada. Não foi o casamento dos sonhos de Marina, mas o possível. Ela acreditava que Renato um dia seria rico e ela teria o que sempre sonhou. Jamais voltaria para a casa dos pais, aquele cubículo que chamavam de casa. Quando engravidou de Mariana a felicidade ficou completa. A maternidade a transformou em uma pessoa melhor. Tratava os pais com mais carinho e estava feliz.
Mas, o destino, às vezes, prega suas peças. Meses antes do primeiro aniversário da filha, Raul chegou a casa, arrasado.
- Marina... Fui demitido. A empresa precisou dispensar funcionários por causa da crise. Vou tentar um trabalho no exterior, uma Multinacional está contratando. Vou ter que deixá-las aqui, por enquanto. Quando as coisas melhorarem, levo vocês. Só que teremos que “apertar o cinto” e deixar esta casa. Você precisar morar na casa de seus pais.
“Morar na casa dos pais”; este era seu pior sacrifício. Como voltar para lá? Sabia que os pais a receberiam bem, mas retornar? Não havia outro jeito. Precisava trabalhar e os pais eram as melhores pessoas para ajudá-la na educação da filha.
O dia da partida chegou. O pouco dinheiro que restava era para a viagem de Renato. Marina estava desolada. Vagou pela cidade tentando por os pensamentos em ordem e não havia outro jeito. Estava decepcionada, humilhada. A vida tinha lhe pregado uma peça.
Já era tarde quando Marina tocou a campainha da zeladoria onde os pais a esperavam. Era seu novo endereço.                                    

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