Revezes da vida
Seu nome era Marina. Mulata, bonita, mas, como ela sempre dizia, tinha um defeito que a
acompanhara como um estigma: ela era pobre. Os ombros encolhidos denunciavam o
complexo de inferioridade que a acompanhou durante os primeiros anos de vida.
Tinham ficado no passado os dias de meninices dos primeiros anos, mas o olhar
baixo, embora agressivo, denunciava o sofrimento pelo qual passara.
Ao recordar
sua infância chegava à conclusão que não tinha sido feliz. Não que a família
tivesse passado por muitas dificuldades ou que fosse vítima de maus tratos.
Possuía uma família feliz. Era filha única e seus pais sempre trabalharam muito
para lhe dar o suficiente para uma vida confortável e digna e por ela fizeram
os maiores sacrifícios, mas o seu próprio preconceito sempre a perseguira.
Preconceito por ser pobre, por andar mal vestida e não pertencer à mesma classe
social de seus colegas. Não estava inserida no mundo que a rodeava. Nunca se
aceitou e, muitas vezes, sentiu inveja da mãe e, ao mesmo tempo, raiva. Inveja,
por ela ter sido rica e raiva por ter abandonado tudo para se casar com um
homem pobre.
- Se eu fosse
rica. - dizia Marina aos pais. Todos seriam meus amigos de verdade.
- Há coisas mais importantes que dinheiro. – rebatia a mãe.
Não, não
havia. Quando criança, com a ingenuidade própria da idade, ela acreditava que
tudo era possível. Mas, aos poucos, os próprios pais foram percebendo que havia
um preconceito velado em relação à filha na escola onde estudava. Primeiro, o
preconceito da própria professora da primeira série que a deixava de lado nas
principais atividades e comemorações da classe. Ela nunca era chamada para
cantar, dançar ou representar a classe. Parecia possuir uma doença contagiosa
que a impedia de participar do grupo. Alguns pais preferiam que seus filhos não
se relacionassem com a filha dos funcionários; sentiam-se constrangidos com a
presença de Marina junto a seus filhos. Eles não aceitavam Marina, não perdoavam
aquela intromissão. Era como se
estudasse “de favor” e que a condição social fosse um abismo entre ela e seus
colegas de classe. E, assim, Marina adquiriu uma repulsa quanto a sua condição
social. Graças ao discernimento da direção, professores e alguns pais, tudo foi
contornado. Afinal, os pais de Marina trabalhavam na escola e eram muito
queridos por todos que os conheciam. Dona Irene trabalhava como zeladora e Seu
Raul era inspetor de alunos. Por isso, Marina ganhara bolsa de estudos.
Aos poucos,
Marina foi conquistando o respeito e garantindo as melhores notas, mas no
silêncio do quarto o seu travesseiro era companheiro inseparável de suas
lágrimas e solidão. Por inúmeras vezes perguntava a mãe porque ela estudava em
escola particular, se eram pobres. A resposta não a convencia.
- Eu trabalho
aqui. Você tem o melhor estudo do mundo, filha. O seu futuro será bem diferente
do meu.
Irene
percebia a tristeza da filha e também sofria. Era o preço que pagava ter enfrentado
a família e casado com um rapaz de poucos recursos. Raul pouco falava, parecia
carregar nos ombros a culpa pelo sofrimento da filha. Afinal, ele sempre fora
pobre. Raul e Irene conseguiram uma vaga na zeladoria do colégio desde a
primeira série de Marina e, assim, a filha pôde estudar de graça no colégio
particular. Tudo que ganhavam era para os estudos da filha. A maior parte,
estava sendo guardada para a Universidade. Irene sempre dizia que Marina
concluiria seus estudos, coisa que ela não fez.
A menina desde
cedo teve que se virar sozinha. Para sobreviver no espaço escolar, criou uma
couraça que a blindava dos possíveis relacionamentos. Assim que as aulas
terminavam corria para a rua para se encontrar com seus amigos de verdade: os
meninos do bairro e ali passava horas a empinar pipas e jogar bolinha de gude. Cresceu
moleca e detestando tudo que lembrasse laços de fita.
A adolescência chegara e Marina não via grandes possibilidades de
ascensão social. Terminou o Ensino Fundamental e nem da formatura ela
participou.
“Não vou
deixar ninguém zombar de mim”. – pensou na defensiva.
No Ensino
Médio, ela percebeu que algo mudara. Milagrosamente, todos a receberam bem.
Marina não tinha percebido que o “patinho feio” estava se transformando em um
“lindo cisne”. Os lábios carnudos que sempre a fizeram sofrer, agora era motivo
de admiração por parte dos colegas de classe. Alta, esguia e “mulatamente”
brejeira, arrancava suspiro e crescia o número de seus admiradores. Mesmo
assim, Marina tremia e as inseguranças do tempo de infância não a deixavam em paz. O convívio com os
colegas venceu as últimas barreiras e, em pouco tempo, já se sentia parte da
turma.
E foi assim,
que Marina se apaixonou por Pedro, o queridinho da classe. Pedro o rapaz
carismático, dono de voz aveludada, que tocava violão e era o preferido entre
as meninas do colégio. Naquele dia, depois de um jogo de basquete masculino, os
olhos de ambos se encontraram no caminho para o vestiário antes do jogo. Marina
sentiu as pernas bambas, o coração acelerado parecendo sair de seu peito. Pedro
a olhou, sorriu e foi isso que a encantou: o sorriso. Para ele, nada de novo,
apenas, um olhar a mais. Para ela a certeza que o mundo rosa se deslumbrava em
seu destino.
Pedro parecia
não perceber as investidas sutis de Marina e, no final do ano, ele já estava namorando
a garota mais bonita do colégio: Camila. Marina ficou arrasada. Resolveu
esquecer Pedro e todas as expectativas em relação ao amor. Ninguém ia namorar
uma pequena, irremediavelmente, pobre. Os rapazes que a procuravam eram olhados
com desdém. As amigas a encorajavam:
-Marina, olha
quem está olhando pra você! Dê uma chance pro Renato.
- O Renato é
pobre como eu. Tô dispensando! – respondeu Marina e assim foi dispensando um a
um os que tentavam se aproximar.
O dia da
formatura do Ensino Médio chegara e Marina estava linda. Ganhara o vestido de
presente da madrinha. Era todo branco e realçava o seu colo moreno. Fizera
escova nos cabelos e no lugar dos cachos negros, que encantavam seus pais,
surgira um cabelo liso e brilhante que também lhe ficara muito bem. Todos
olharam admirados quando o pai a conduziu pelo centro do salão. Pedro também a
olhou demoradamente por detrás dos cabelos de Camila, sua namorada.
Marina
elegantemente valsou pelo salão com o pai. Depois foi a vez de Renato a
convidar para dançar e ela aceitou a contragosto. Por diversas vezes, os olhares de Pedro e
Marina se cruzaram na pista. Renato percebeu o interesse:
-Marina! Quem
está dançando com você, sou eu. –irritado, Renato a deixou o salão. Marina nem
se importou, pois para ela só Pedro existia.
Depois da
formatura, não mais encontrou os rapazes, ela não freqüentava os mesmos ambientes
de ambos. Mas, entre um livro e outro, a imagem de Pedro e Renato ocuparam seus
pensamentos. Pedro, o rapaz mais lindo do mundo, e Renato, o rapaz que todos
queriam que ela aceitasse. Marina percebia que até seus pais torciam por ele.
-E aquele
rapaz, que estava na festa de formatura. Você não vai namorá-lo? Formam um
lindo casal. – disse-lhe a mãe enquanto conversavam.
- Não. Renato
é pobre. Vive “numa pindaíba só”.
-Marina, como
pode dizer uma coisa dessas!
-Deixa pra
lá. É melhor não discutir. Você não vai entender. Não pensou em mim quando
casou com papai.
A mãe chorou
às escondidas. Tinha falhado na educação da filha. Ela tinha horror a ser pobre. Horror às suas origens.
Assim o tempo acertou as arestas e diminuiu os
ressentimentos. O primeiro dia de aula de Marina como universitária chegou. Ela
escolheu Psicologia, talvez por sentir necessidade de autoconhecimento. E foi
na Universidade que reencontrou Renato e Pedro. Os dois estudavam Engenharia.
Sentiu a mesma emoção de antes: o frio na barriga por Pedro e a aversão por
Renato. Ambos sorriram e vieram ao seu encontro. Foi Pedro quem falou primeiro:
-Que bom
vê-la de novo. Precisamos marcar um encontro. Camila também estuda aqui. Ela
gostará de lhe ver.
As palavras
de Pedro foi “uma balde” de água fria. Renato nada disse, mas parecia
satisfeito pelo encontro.
Os encontros
se repetiram e a saída dos quatro se tornou constante. Era difícil para ela ver
Camila aos beijos com Pedro. Com o tempo, o casal começou a se distanciar; só
lhe restou Renato. Marina só não o dispensou porque ele a levava a barzinhos, passeios e baladas. Renato comprara um carro.
Mas, um dia,
depois de um programa rotineiro, Renato lhe pediu em namoro:
-Marina, faz
tempo que estamos saindo juntos. Quer namorar comigo?
Não havia
como dizer não, ele se tornara imprescindível para suas aspirações. Não agora
que necessitava de sua companhia. Ela precisava de um rapaz com carro para frequentar
lugares elegantes.
Dona Irene
ficou muito feliz, agora Marina tinha tomado juízo:
-Agora ela
será feliz. Renato é um bom moço. –argumentou Irene.
-Não acredito
nas boas intenções de nossa filha. - rebateu Raul.
A vida tinha ensinado a Raul a não acreditar
em contos de fadas. Marina era preconceituosa, nunca aceitara sua posição
social e não estava com Renato por amor. Era só interesse.
- Tudo que me
acontece é porque sou pobre. Pobreza chama pobreza. É um “carma”. A senhora
tinha que se casar com um pobre. Adoro meu pai, mas ele é pobre. - chorava
Marina em casa para a mãe.
- Você “cospe
no prato” que comeu. – dizia Irene.
-Casar e
morar aqui? Nunca... Jamais. – rebelava-se ela.
Nunca dissera
a Renato a aversão quanto a sua pobreza e talvez, por isso, ele sempre a queria
de volta:
-Marina... Fomos
feitos um para o outro. Quer casar comigo?
-É muito
cedo. Não quero me casar agora. - desconversava.
Renato
resolveu se afastar. Amava Marina, mas não queria se humilhar. O namoro foi
desfeito. Deprimida e sem perspectiva de vida melhor, Marina trancara sua
matrícula na Universidade e largara o emprego na secretaria da escola, para
decepção de seus pais. O sonho de ambos era ver a filha formada e agora...
Foi a vez de
Raul dar uma lição na filha:
- Agora é
assim... Se quiser permanecer ao nosso lado, a regra é essa: você vai trabalhar
para sustentar a sua vida. Nem conseguiu se formar. Nós fomos responsáveis pelo
que você se tornou. Sempre lhe tratamos como uma princesa, mas sempre é tempo
para mudar. –concluiu Raul.
Não teve
outro jeito, ela não tinha para onde ir. Passava os dias, fechada em seu
quarto, sentindo-se a pior das criaturas. Pelo menos, houve tempo suficiente
para por as idéias em ordem.
Os meses
foram passando e a vida voltou ao normal. Marina arrumou um emprego como
estagiária em uma clínica de psicologia e reabriu sua matrícula na
Universidade. Os pais pouco conversavam com ela, principalmente Raul que não
mais lhe dirigiu a palavra.
O que mais a
incomodava era o fato de que sentia falta de Renato. Sentia falta de seu carinho
e de sua atenção. Encontrou-o, certa vez, perto da Universidade, conversando
com uma moça bonita e sentiu ciúmes. Pela primeira vez, se sentiu ameaçada,
Renato parecia interessado na companhia da moça. A cena a perseguiu durante
dias e resolveu procurá-lo:
-Renato!
Estou sentindo muito a sua falta. Me perdoe.
- Não há o
que perdoar. Você pra mim não faz diferença.
Marina sabia
que merecia aquele tratamento. Precisava reconquistá-lo e como sabia onde ele
estava trabalhando, sempre que possível, dava um jeito de encontrá-lo. O
coração batia forte e ela percebeu que estava apaixonada pelo rapaz de origem
pobre e que tanto desprezara. Um encontro ali, outro aqui e logo estavam
reatando o namoro.
A vida estava
lhe dando nova chance. Aos poucos, Marina reconquistara o carinho da mãe e até
do pai. Mas a aversão à pobreza continuava.
- Só caso se
morar em uma casa grande, bonita, mesmo que seja de aluguel.
-Tudo bem.
Farei sua vontade. – disse Renato. Ele amava Marina e faria qualquer
sacrifício.
O casamento
aconteceu anos depois, já com a família totalmente reconciliada. Não foi o
casamento dos sonhos de Marina, mas o possível. Ela acreditava que Renato um
dia seria rico e ela teria o que sempre sonhou. Jamais voltaria para a casa dos
pais, aquele cubículo que chamavam de casa. Quando engravidou de Mariana a
felicidade ficou completa. A maternidade a transformou em uma pessoa melhor.
Tratava os pais com mais carinho e estava feliz.
Mas, o
destino, às vezes, prega suas peças. Meses antes do primeiro aniversário da
filha, Raul chegou a casa, arrasado.
- Marina... Fui
demitido. A empresa precisou dispensar funcionários por causa da crise. Vou
tentar um trabalho no exterior, uma Multinacional está contratando. Vou ter que
deixá-las aqui, por enquanto. Quando as coisas melhorarem, levo vocês. Só que
teremos que “apertar o cinto” e deixar esta casa. Você precisar morar na casa
de seus pais.
“Morar na
casa dos pais”; este era seu pior sacrifício. Como voltar para lá? Sabia que os
pais a receberiam bem, mas retornar? Não havia
outro jeito. Precisava trabalhar e os pais eram as melhores pessoas para
ajudá-la na educação da filha.
O dia da
partida chegou. O pouco dinheiro que restava era para a viagem de Renato.
Marina estava desolada. Vagou pela cidade tentando por os pensamentos em ordem
e não havia outro jeito. Estava decepcionada, humilhada. A vida tinha lhe
pregado uma peça.
Já era tarde
quando Marina tocou a campainha da zeladoria onde os pais a esperavam. Era seu
novo endereço.
Nenhum comentário:
Postar um comentário