quinta-feira, 4 de abril de 2013

Terra do Sol Nascente


Terra do Sol Nascente

            Voltar à terra natal! Depois de tanto tempo, vencer o medo e recomeçar. Os vestígios da tragédia ainda estão visíveis: algumas casas destruídas; os parques ainda inacabados... Tudo foi modificado, as histórias de vida estão sepultadas em ferragens distorcidas e entulhos já retirados para algum depósito frio e mal cheiroso. Não há mais recordações reais: fotografias, jornais antigos, quadros; as recordações estão somente nos corações dos que sobreviveram à tragédia.
            Hoje, somente recordações do dia do trágico acontecimento: o dia que o tsunami destruiu mais que lembranças: destruiu sonhos e projetos de vida.
             Okabe é um sobrevivente. Estava trabalhando no dia em que o mar revolto mostrou toda sua força e fúria da Natureza. Conseguiu sobreviver com a ajuda de amigos, mas sua família, que estava em casa, não teve a mesma sorte. Perdeu mulher e dois filhos, além dos pais. Todos moravam em uma das províncias mais devastada pelo tsunami: Miyagi, nordeste do País e onde morreram mais de nove mil e quinhentas pessoas.
            Recordou o dia em que um terremoto abalou a província. Foram minutos que pareceram horas. O alarme contra terremotos soou minutos antes de tudo tremer. Passavam das duas horas e quarenta minutos. Foi a última vez que olhou para o relógio antes da tragédia, por isso não sabe bem precisar o tempo. Estava trabalhando em sua loja e saiu assustado pelas ruas, queria chegar logo em casa, precisava encontrar sua família. Mas, o pior ainda estava por vir. O terremoto produziu ondas gigantes que com fúria invadiu casas e destruiu vidas. Ele é um sobrevivente: do terremoto, do tsunami, da vida.
            Agora é preciso colar os cacos, procurar recordações na memória e torná-las reais. A sua casa ou o lugar onde morou ainda conserva os entulhos da tragédia. Nunca mais voltou ali depois que encontraram os corpos de seus familiares. Esse dia ele quer esquecer, ou melhor, já esqueceu. Há vazios em seu cérebro que por mais que tente não consegue recordar. Só lembra que não conseguiu chorar, o tsunami varreu também recordações de sua mente.
            Agora quis voltar. Quer vasculhar o que resta na ilusão de encontrar algo que o torne parte do mundo atual. O passado se foi, mas o futuro está a sua frente, ele tem que caminhar, não pode morrer junto com os destroços do passado. Tem que viver para lutar pelo que se sempre acreditou: A gente nasce para ser feliz.
            Sempre repetiu essas palavras aos filhos, à esposa a si mesmo. Isso ele recorda muito bem, era seu lema. Seu grito de guerra: Felicidade sempre. Agora, as palavras deixaram de ter sentido, ficaram mudas diante da tragédia. Ele se emudeceu. Há muito não fala. Repete as palavras que a necessidade do dia a dia lhe pede, mas transformou-se em um robô. Um ser sem alma, sem vida.
            Senta-se na calçada e chora pela primeira vez e isso lhe faz muito bem. Ouve ao longe uma voz infantil:
            - Ei moço! Está chorando?
            Olha impaciente a pessoa que o indaga:
            -Não. O que você faz aqui?
            -Vim com minha mãe.
            A mãe chega pedindo desculpas pela filha. Ela sorri e é o primeiro sorriso que ele viu depois de muito tempo.
            - Ioshi é muito intrometida.  Me desculpa. Sempre morei aqui, mas estava viajando quando tudo aconteceu. Perdi muitos parentes, mas a vida continua.
            Okabe não acredita no que vê. Aquela mulher está feliz, sorrindo diante dele, talvez rindo de sua tragédia.
            - Esta era minha casa. Perdi toda minha família. – diz meio sem graça.
            - Mas está vivo. Por alguma razão continua vivo. -observa a moça.
            -Para ser penalizado. Não há razão para continuar vivo. – responde.
            - Poderia me acompanhar? Quero lhe mostrar algo. –insiste a mulher.
            Ele não quer, mas a segue. Há tempos que se deixa levar sem resistência.
            A moça entra em um carro e ele a acompanha. Pelo caminho Okabe observa que tudo está sendo reconstruído: ruas, avenidas, casas. Um imenso “canteiro de obras” que só o povo japonês é capaz de reconstruir em tão pouco tempo. Ele se orgulha de ser japonês, mas até agora não sentiu vontade de se reconstruir.
            Vão para Tóquio e o carro pára em frente a uma casa onde se lê: Lar das crianças. Ioshi salta animada:
            -Venha ver tio. Esta é minha casa. Venha ver meus irmãos. Tenho muitos irmãos e muitos pais e mães.
            Ele é rodeado por crianças alegres e felizes. A moça que o levou se chama Mitiko e lhe diz que se trata de um abrigo para crianças que perderam os pais e familiares na tragédia. Crianças que precisam acreditar novamente na vida. Okabe pensa nos filhos, na esposa e se sente em paz. Foram eles, seus filhos, que lhe guiaram os passos.
            - Aqui você encontra motivo para sorrir. Eles nos ajudam e nós os ajudamos. Quer experimentar?
            Aos poucos, contagiado pela barulheira infantil e farta distribuição de sorrisos, Okabe sorri.
            Terremotos, tsunamis, tragédias ficaram guardados no passado. Infelizmente, tragédia é lugar comum no mundo todo. Todas as Nações contabilizam desgraças anunciadas ou não; elas são destaques no cotidiano das manchetes de jornais do mundo todo. São inevitáveis.  Mas, Ioshi estava ali para mostrar que sempre há um motivo para continuar.  
            Para Okabe era hora de recomeço. Muitos precisavam dele e ele precisava muito de todos.
             
              

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