segunda-feira, 11 de março de 2013

Ousadia: coisa de criança


Ousadia: coisa de criança

                             A calça com suspensórios, abaixo do joelho, a camisa branca em desalinho, meias até o joelho, botinas, boné e um estilingue nos bolsos da calça compunham o figurino de Pedro no primeiro dia de aula daquele ano. Tinha doze anos, mas aparentava dez. Pedro era um menino esperto, olhar vivo, olhos amendoados, marotos, sempre procurando algo mais que os olhos dos outros não viam. Cabelos castanhos escuros, estilo “tigela”, cortados pela mãe.  As mãos grossas denunciavam o trabalho precoce de ajudar a cortar lenha e cumprir as tarefas corriqueiras solicitadas pelos pais. Era inquieto e o fato de não parar no lugar chamava a atenção da professora e demais colegas da classe.  Desde que a última professora deixara o povoado, há um ano, era a mãe quem lhe ensinava a escrita e as contas.
                             Essa primeira avaliação denunciava o desafio que Dona Rosa enfrentaria. Os olhos da professora depararam então com o olhar de Maria.
                             Maria embevecia a todos com um olhar meigo e angelical. Olhos verdes, cabelos loiros arrumados em longas tranças. Era a típica descendente de italianos.  Parecia muito tímida e o rubor que tomava a sua face à simples menção de seu nome tornava-a encantadora. Usava um vestido abaixo dos joelhos, repleto de laços e fitas. Era o seu primeiro dia de aula e nada entendia das letras e das contas. Tinha oito anos. 
                             Aquela figura que parecia sair de um quadro chamara a atenção não só da professora, mas também do menino espevitado. Pedro não se lembra da primeira vez que olhou para Maria, pois seus olhos não se desviaram mais. Aqueles olhos de esmeraldas o deixaram hipnotizado. Naquele olhar estava todo um futuro e por ele a vida se tornara tão importante. Se fossem questionadas as palavras de Dona Rosa naquele dia, com certeza, ele não saberia responder, tão absorto estava naquela imagem de anjo que teimava em não retribuir seu olhar.
                             Maria estava constrangida com aquele menino que não lhe tirava os olhos. Tentou disfarçar, conversar com as amigas, mas nada adiantava. Instintivamente olhou em sua direção. Mas, no momento em que seus olhos fixaram os de Pedro, a química, a atração, o irresistível aconteceu... Aquele olhar a perturbara e, com certeza, passou a fazer parte de seus pensamentos.  
                             A voz da professora ao longe veio quebrar o encanto e trouxe a realidade de volta aos dois corações. Dona Rosa pedira a Pedro, que já que estava alfabetizado, que lesse as frases de boas-vindas escritas no quadro-negro improvisado. Todo importante, ele obedeceu. Com voz alta, meio gaguejando, executou o pedido. Ao término riu, gracejou como se tivesse terminado um ato teatral, mas, tudo isso só tinha uma finalidade: Maria.
                             O que mais o cativara em Maria? A “falinha” mansa, o olhar apreensivo como se a pedir desculpas, o rostinho angelical? Ele não sabia. Era um conjunto perfeito de formas e cores que o deixara inebriado. Era a personificação de um sonho.
                             E Maria? O que mais a cativara em Pedro? A ousadia ao lhe dirigir o olhar. Aquele menino atrevido, bem mais velho, a constrangia e a deixava envergonhada.
                             A partir daquele dia, as aulas foram para Pedro os momentos mais importantes de sua vida. A escola que antes era apenas um motivo para fugir dos afazeres domésticos e momentos de lazer com os amigos, de repente, se tornou significativa e necessária para o seu futuro.      
                             Em casa, a mãe estranhou a mudança. O menino vivia estudando pelos cantos, após as obrigações diárias, embora suspirasse com o olhar perdido em algum ponto da casa.
                             “Deve estar pensando em algum problema de difícil solução”. - pensava dona Antonia, com seus botões.
                               Na verdade, Pedro sonhava acordado. A imagem daqueles olhos verdes o perseguia. Era como um talismã que abriria as portas para a felicidade. A sua vida passou a ter um objetivo: fazer bonito para aquela menina que povoava seus sonhos. Um dia seria professor, se casaria com ela e viveriam felizes para sempre. Essa certeza, ele encontrava nos olhos daquela “italianinha” que, pouco a pouco, lhe retribuía os olhares.
                              Pedro havia conquistado o seu primeiro grande prêmio: o coração de Maria e esta ousadia, na conquista de seus objetivos, seria um traço marcante de sua personalidade.             
                              O tempo foi passando e as crianças crescendo. Entre Pedro e Maria, nascia uma amizade maior do que com outros meninos e meninas de sua idade. Havia uma cumplicidade em tudo que faziam. Uma simples brincadeira de roda no espaço em frente à Igreja, onde sempre davam um jeito de estarem perto um do outro, transformava-se em acontecimento marcante para aquele amor juvenil. Mas, o que acontecia nos corações enamorados não era percebido pelas mães que, sempre atentas, vigiavam as diversões pueris.    
                              Pedro era diferente dos meninos da sua idade. Enquanto os meninos se escondiam “nas saias das mães” com vergonha das meninas, ele era amigo de todas e participava de todas as brincadeiras: de roda, pega-pega, pique, escravos de Jó... E tudo mais que houvesse de interessante naqueles dias de domingo. Seu jogo preferido era “beijo-abraço-aperto de mão”. Gostava de ver as meninas se enrubescerem quando pedia “beijo”. Não ganhava o beijo, mas causava embaraços.
                              Ambos foram crescendo e se distanciando. As brincadeiras de roda não mais aconteciam. As mães não mais permitiam essa intimidade e as meninas, após a missa, tinham que permanecer em casa, ajudando nos afazeres domésticos.
                              Uma crise econômica do pai de Maria distanciou ainda mais os jovens. Ela teve que abandonar a escola para ajudar em casa. Os divertimentos de infância e o estudo foram substituídos por responsabilidades.
                              Aos doze anos, coube a Maria fazer todo o serviço de casa: cozinhar, lavar, além de cuidar das crianças e tratar dos animais domésticos. Embora sentindo falta da presença de Pedro, Maria não reclamava.
                              Sem tempo para lazer, Pedro e Maria pouco se viam. Isso não diminuiu em nada aquele sentimento puro que nasceu no primeiro encontro e um simples olhar era suficiente para transformar à tarde chuvosa em domingo de sol. Nesses momentos mágicos, a voz sumia na garganta e somente os olhos falavam.  
                              Para Pedro, Maria era sua namorada e vice-versa, mesmo que nenhuma palavra fosse dita ou juras fossem feitas. Em seu pensamento, quando completasse vinte anos e Maria dezesseis, conversaria com Luis sobre suas pretensões.
                             A certeza de seu futuro na cidade grande, junto com Maria, fazia com que planos mirabolantes e utópicos fossem a constante naquela cabecinha juvenil. Ele venceria todos os obstáculos, pois tinha ousadia suficiente para isso.
                             Vencer era a palavra de ordem e, com certeza, Pedro era ousado o bastante para converter seus sonhos em realidade.   

( retirado do livro “Pedro Brasileiro” de minha autoria).

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