Ousadia: coisa de criança
A
calça com suspensórios, abaixo do joelho, a camisa branca em desalinho, meias
até o joelho, botinas, boné e um estilingue nos bolsos da calça compunham o
figurino de Pedro no primeiro dia de aula daquele ano. Tinha doze anos, mas
aparentava dez. Pedro era um menino
esperto, olhar vivo, olhos amendoados, marotos, sempre procurando algo mais que
os olhos dos outros não viam. Cabelos castanhos escuros, estilo “tigela”,
cortados pela mãe. As mãos grossas
denunciavam o trabalho precoce de ajudar a cortar lenha e cumprir as tarefas
corriqueiras solicitadas pelos pais. Era inquieto e o fato de não parar no
lugar chamava a atenção da professora e demais colegas da classe. Desde que a última professora deixara o
povoado, há um ano, era a mãe quem lhe ensinava a escrita e as contas.
Essa
primeira avaliação denunciava o desafio que Dona Rosa enfrentaria. Os olhos da
professora depararam então com o olhar de Maria.
Maria
embevecia a todos com um olhar meigo e angelical. Olhos verdes, cabelos loiros
arrumados em longas tranças. Era a típica descendente de italianos. Parecia muito tímida e o rubor que tomava a
sua face à simples menção de seu nome tornava-a encantadora. Usava um vestido
abaixo dos joelhos, repleto de laços e fitas. Era o seu primeiro dia de aula e
nada entendia das letras e das contas. Tinha oito anos.
Aquela
figura que parecia sair de um quadro chamara a atenção não só da professora,
mas também do menino espevitado. Pedro não se lembra da primeira vez que olhou
para Maria, pois seus olhos não se desviaram mais. Aqueles olhos de esmeraldas
o deixaram hipnotizado. Naquele olhar estava todo um futuro e por ele a vida se
tornara tão importante. Se fossem questionadas as palavras de Dona Rosa naquele
dia, com certeza, ele não saberia responder, tão absorto estava naquela imagem
de anjo que teimava em não retribuir seu olhar.
Maria
estava constrangida com aquele menino que não lhe tirava os olhos. Tentou
disfarçar, conversar com as amigas, mas nada adiantava. Instintivamente olhou
em sua direção. Mas, no momento em que seus olhos fixaram os de Pedro, a
química, a atração, o irresistível aconteceu... Aquele olhar a perturbara e,
com certeza, passou a fazer parte de seus pensamentos.
A
voz da professora ao longe veio quebrar o encanto e trouxe a realidade de volta
aos dois corações. Dona Rosa pedira a Pedro, que já que estava alfabetizado,
que lesse as frases de boas-vindas escritas no quadro-negro improvisado. Todo
importante, ele obedeceu. Com voz alta, meio gaguejando, executou o pedido. Ao
término riu, gracejou como se tivesse terminado um ato teatral, mas, tudo isso
só tinha uma finalidade: Maria.
O
que mais o cativara em Maria? A “falinha” mansa, o olhar apreensivo como se a
pedir desculpas, o rostinho angelical? Ele não sabia. Era um conjunto perfeito
de formas e cores que o deixara inebriado. Era a personificação de um sonho.
E
Maria? O que mais a cativara em Pedro? A ousadia ao lhe dirigir o olhar. Aquele
menino atrevido, bem mais velho, a constrangia e a deixava envergonhada.
A
partir daquele dia, as aulas foram para Pedro os momentos mais importantes de
sua vida. A escola que antes era apenas um motivo para fugir dos afazeres
domésticos e momentos de lazer com os amigos, de repente, se tornou
significativa e necessária para o seu futuro.
Em
casa, a mãe estranhou a mudança. O menino vivia estudando pelos cantos, após as
obrigações diárias, embora suspirasse com o olhar perdido em algum ponto da
casa.
“Deve
estar pensando em algum problema de difícil solução”. - pensava dona Antonia,
com seus botões.
Na verdade, Pedro sonhava acordado. A
imagem daqueles olhos verdes o perseguia. Era como um talismã que abriria as
portas para a felicidade. A sua vida passou a ter um objetivo: fazer bonito
para aquela menina que povoava seus sonhos. Um dia seria professor, se casaria
com ela e viveriam felizes para sempre. Essa certeza, ele encontrava nos olhos
daquela “italianinha” que, pouco a pouco, lhe retribuía os olhares.
Pedro havia conquistado o seu primeiro
grande prêmio: o coração de Maria e esta ousadia, na conquista de seus
objetivos, seria um traço marcante de sua personalidade.
O tempo foi
passando e as crianças crescendo. Entre Pedro e Maria, nascia uma amizade maior
do que com outros meninos e meninas de sua idade. Havia uma cumplicidade em
tudo que faziam. Uma simples brincadeira de roda no espaço em frente à Igreja,
onde sempre davam um jeito de estarem perto um do outro, transformava-se em
acontecimento marcante para aquele amor juvenil. Mas, o que acontecia nos
corações enamorados não era percebido pelas mães que, sempre atentas, vigiavam
as diversões pueris.
Pedro era
diferente dos meninos da sua idade. Enquanto os meninos se escondiam “nas saias
das mães” com vergonha das meninas, ele era amigo de todas e participava de
todas as brincadeiras: de roda, pega-pega, pique, escravos de Jó... E tudo mais
que houvesse de interessante naqueles dias de domingo. Seu jogo preferido era
“beijo-abraço-aperto de mão”. Gostava de ver as meninas se enrubescerem quando
pedia “beijo”. Não ganhava o beijo, mas causava embaraços.
Ambos foram
crescendo e se distanciando. As brincadeiras de roda não mais aconteciam. As
mães não mais permitiam essa intimidade e as meninas, após a missa, tinham que
permanecer em casa, ajudando nos afazeres domésticos.
Uma crise
econômica do pai de Maria distanciou ainda mais os jovens. Ela teve que
abandonar a escola para ajudar em
casa. Os divertimentos de infância e o estudo foram
substituídos por responsabilidades.
Aos doze anos,
coube a Maria fazer todo o serviço de casa: cozinhar, lavar, além de cuidar das
crianças e tratar dos animais domésticos. Embora sentindo falta da presença de
Pedro, Maria não reclamava.
Sem tempo para
lazer, Pedro e Maria pouco se viam. Isso não diminuiu em nada aquele sentimento
puro que nasceu no primeiro encontro e um simples olhar era suficiente para
transformar à tarde chuvosa em domingo de sol. Nesses momentos mágicos, a voz
sumia na garganta e somente os olhos falavam.
Para Pedro, Maria
era sua namorada e vice-versa, mesmo que nenhuma palavra fosse dita ou juras
fossem feitas. Em seu pensamento, quando completasse vinte anos e Maria
dezesseis, conversaria com Luis sobre suas pretensões.
A
certeza de seu futuro na cidade grande, junto com Maria, fazia com que planos
mirabolantes e utópicos fossem a constante naquela cabecinha juvenil. Ele
venceria todos os obstáculos, pois tinha ousadia suficiente para isso.
Vencer
era a palavra de ordem e, com certeza, Pedro era ousado o bastante para
converter seus sonhos em realidade.
( retirado do livro “Pedro Brasileiro” de minha autoria).
Nenhum comentário:
Postar um comentário