Maldição na praia
Trabalhar em uma grande empresa não era nada
fácil, ainda mais quando toda a responsabilidade caia sobre “suas costas”.
Aquela semana, particularmente, fora muito estafante. Um grande negócio estava
para ser fechado, o que custou ao Miguel várias horas extras. Não houve um dia
que não saísse do escritório às vinte e duas horas. Aqueles malditos
relatórios! Mas, era bem remunerado, gostava do que fazia e sentia que o chefe
o admirava.
O som da voz do chefe pedindo eficiência e rapidez
ainda soava nos seus ouvidos. Mas, chefe é chefe e Miguel suportou tudo
heroicamente. Comeu e respirou escritório. Naquela semana, nada de noitadas,
nada de noiva, nada de amigos. O dragão estava à solta. Era assim que o chefe
Alfredo era chamado pelos funcionários: “O Dragão”, aquele que “cospe pelas
ventas”. Surpreendentemente, na quinta feira à noite, o chefe lhe chamou para
uma agradável notícia:
-Amanhã, parto para New York para assinatura do
contrato. Você tem trabalhado demais, pegue um dia de folga. A sexta feira é
sua. Mas, sempre havia um “mas”, deixe o telefone ligado para alguma
emergência.
E ali estava Miguel, recostado em sua cadeira,
sentindo a brisa do mar em seu rosto. A praia estava tranqüila e seus olhos
estavam pesados. De repente, alguém o tirou daquele torpor:
- Posso ler a sua mão?
Acordou assustado com a mão da cigana
agarrando a sua com insistência:
-Deixe-me em paz. - gritou o rapaz, retraindo a mão
asperamente.
Como estava meio dormindo fora grosseiro, mal
educado. Puxou a mão com tanta força que desequilibrara a mulher. Trôpega, ela
caiu na areia. Miguel viu no rosto da cigana a raiva estampada. Só essa visão
já o deixou receoso, mas as palavras ameaçadoras, ditas por ela, o amedrontaram
ainda mais:
- Esta é a minha maldição: Sua vida terá em um mês o
fim, nunca mais zombará de mim.
A cigana saiu gargalhando, certa da influência que
causara. Miguel a acompanhou com os olhos até que sua imagem desaparecesse
entre os guarda-sóis. Levantou-se atordoado. Teria sido um transe? Uma
alucinação? Um pesadelo? Ele não se considerava supersticioso, mas a cigana
mexeu com a sua paz de espírito. O melhor era dar a manhã por encerrada.
Telefonaria a Rose e combinaria um almoço a dois.
Rose o esperava elegantemente trajada no restaurante
combinado. Executiva, bonita e jovem, chamava a atenção dos frequentadores do
local. Sorriu ao notar a chegada do noivo e este sorriso demonstrava o bom
momento pelo qual a relação de ambos passava. Estavam noivos havia três anos;
tudo planejado com carinho para o grande dia do casamento. Rose o interpelou:
- O que aconteceu? Estranhei seu telefonema, você
disse que ia passar a tarde toda na praia...
- Resolvi almoçar com você. Fiz mal? – brincou meio
sem jeito.
- É claro que não. Adorei. Estou lhe achando
preocupado. Acertei?
Não tinha como esconder da noiva, os anos de
convivências os tornaram parceiros e transparentes em suas emoções.
-Depois eu lhe conto. Agora vamos comer.
Conversaram sobre banalidades durante todo o almoço,
ou melhor, Rose conversou, pois a jovem falava “pelos cotovelos” e Miguel
apenas ouvia. Era bom ouvir aquela voz cheia de admiração e carinho. Ele era
jovem, bonito e talentoso; uma vida inteira pela frente.
Uma vida inteira pela frente? Será que existiria o
futuro depois deste maldito dia? Miguel estava aflito e quase não comeu. Rose
nem percebeu, entusiasmada em contar os avanços da reforma do apartamento de
ambos.
- Você não gostou da cor da tinta? - ela perguntou
meio decepcionada, pois não obtinha resposta do noivo.
Miguel acordou de seus pensamentos:
- Desculpe meu bem, estava longe...
- O que está havendo?
- Nada que deva preocupar minha noivinha querida.
- Então está bem. Fica resolvido o problema da cor.
As horas passaram depressa e Rose ainda tinha que
voltar ao serviço. Miguel teria a tarde livre.
-Descanse bastante, amor. À noite nos encontraremos.
- beijou-o demoradamente.
O beijo prometia uma noite de sonhos, mas ele não
estava pensando nisso. Seus pensamentos estavam na cigana e na sua língua maligna.
De volta ao seu apartamento, Miguel tentou ler um
livro, fazer palavras cruzadas e nada disso funcionou. Resolveu relaxar e
dormir um pouco. Dormiu e sonhou:
“A cigana vinha em sua direção, com uma roupa
vermelha vibrante e dançando música flamenga. O lenço vermelho que cobria o
rosto deixava os olhos à mostra completando o figurino. Ao chegar perto dele,
retirou o véu do rosto e dentes dourados em um sorriso metálico de dar medo
estamparam sua face. O som estridente de uma gargalhada cobria o ambiente”. Ela
lhe dizia:
- “Em um mês sua vida terá um fim; nunca mais zombará
de mim”.
Acordou sobressaltado. Suava frio. Aquilo era muito
real, não havia mais dúvidas. Ele estava condenado a morrer em um mês. Este era
um sonho profético. Todos os seus sonhos, todos seus objetivos na carreira e na
vida pessoal deitaram-se por terra.
Ele precisava de um tempo. Era preciso deixar Rose
para que ela não sofresse com sua morte. Ela não precisava saber da maldição. Um
mês e se nada acontecesse, tudo retornaria de onde parara. Pensou... Pensou e
achou uma explicação para o término do namoro: estava indeciso, com medo de se
casar. Afinal, muitos solteirões têm medo de se casar. Não era o primeiro. E o
trabalho? Como fazer para convencer o “dragão” da necessidade de se ausentar
por um mês. O melhor era inventar uma doença contagiosa. Miguel tinha férias a
tirar. Pois bem, usaria suas férias para tratamento.
Após o trabalho, Rose veio ao seu encontro em seu
apartamento:
- Você não atendeu meus telefonemas. Resolvi vir
pessoalmente. O que está acontecendo? Está pálido. Já, no almoço, percebi algo
errado.
- Estive, a tarde toda, pensando em nós dois. Acho
que estamos indo muito depressa com o nosso casamento. Resolvi lhe pedir um
tempo para colocar as idéias em ordem. - Miguel falou apressadamente, para não
se arrepender e deixar para depois.
-
Está louco? Tempo? Pra quê?
-Para
eu pensar melhor no que estou deixando com a vida de solteiro. Pensar melhor na
mudança que acontecerá em nossas vidas. Acho que não estou preparado. Vamos
ficar um mês longe um do outro, para pensarmos melhor.
- Não preciso pensar melhor depois de três anos de
noivado e dois de namoro. São cinco anos... E nossos sonhos? Nosso apartamento?
- É só um mês. Me dê esse tempo...
- Terá todo o tempo do mundo. Só não garanto que
ficarei a sua espera. - finalizou entre
lágrimas.
Rose saiu batendo a porta e chorando
desesperadamente. Miguel continuou sentado no sofá, arrasado, mas não foi atrás
dela. Era melhor que Rose sofresse agora do que sofrer por sua morte.
Agora era com o chefe Alfredo. Era melhor telefonar para
sua casa. Por telefone ficava mais fácil mentir:
- Chefe, é Miguel. Preciso falar por telefone, porque
estou com febre. Os médicos acreditam que é um vírus contagioso, de fácil
contágio. Preciso tirar um mês para tratamento. - falou depressa, mas com voz insegura,
frágil.
- Miguel, você estava tão bem na quinta feira. Agora
quer um mês para tratamento. Você foi ao médico? E o atestado? – respondeu meio
desconfiado.
-Não quero tirar licença médica. Tenho um mês de
férias e gostaria de usá-la. Como disse o médico, é perigoso o contágio. Terei
que ficar em uma clínica, isolado.
- Vou ver o que posso fazer. Darei suas férias. E, a
propósito, o contrato com a agência em Nova York, foi fechado. Deixarei o
Nivaldo em seu lugar. Sei que ele está interado dos problemas daqui.
- Com certeza e parabéns pelo contrato. Obrigado por
me atender.
- Estimo melhoras.
O chefe não parecia muito convencido da doença, mas não
havia mais nada a ser feito. Não ia perder o último mês de sua vida,
trabalhando. Seguiu pela praia e parou
em frente uma barraca de tatuagem. Sempre quis se tatuar, desde a adolescência.
Com o tempo, trabalhando em empresas de renome, não ficava bem um funcionário
tatuado. Mas, agora era diferente, estava com os dias contados e a tatuagem não
ia prejudicar em nada sua vida futura, pelo menos é o que supunha.
Entrou na tenda e um jovem veio atendê-lo:
- O que deseja? Um desenho em especial?
Decidiu e escolheu um dragão nas costas. Ironia? Lembranças
do chefe? Pode ser; afinal ele foi responsável por tantas horas de sono
perdidas, tanto estresse, era hora de vê-lo “pelas costas”. Saiu da tenda ainda
sentindo as dores das agulhas e com um dragão nas costas.
Miguel, com o tempo todo livre, se viu desorientado,
não queria entrar em
depressão. Precisava pensar em alguma coisa que não fosse o
seu futuro e decidiu, então, viajar. Bem longe, talvez para um lugar bem frio,
nas montanhas.
O chalé era encantador, o vinho maravilhoso e a
cidade mais ainda, mas nada disso o deixava satisfeito sem a noiva; nada disso
tinha sentido. Fazia frio e ele sentia o coração gelado em seu peito. Ela era o
amor de sua vida e ele sentia sua falta. Arrependeu-se por não a ter levado.
Os dias foram passando e a ansiedade aumentando. Dias
intermináveis e noites desesperadoras. Nada acontecia. Os vinte dias terminaram
depressa. Miguel precisava retornar a sua cidade. Será que não ia morrer? Ciganas
não são dignas de credibilidade? Até o final de semana, findava-se o prazo para
que o pior acontecesse. Depois, estaria livre. Livre para voltar a sonhar,
voltar para Rose e para o seu emprego ou...
À volta, para casa, foi exaustiva. Miguel queria
chegar logo, deitar-se em sua cama e não pensar em mais nada até sábado, o dia
fatídico. O sábado chegou e ele resolveu não levantar da cama, nem atender
telefonemas. Assim permaneceu até a manhã de domingo. No domingo, acordou
sobressaltado com uma luz imensa entrando pela janela. Teria morrido? Que luz
era aquela? Abriu as janelas e viu que era o sol. Ele ainda estava vivo.
Por um momento, sentiu-se traido... Deixara Rose,
perdera dinheiro, faltara ao emprego e nada? Mas, ele estava vivo e isso é que
importava. Superstição era besteira, coisa de quem não tem o que fazer. Miguel
agradeceu a todas as forças do universo. Sentia-se envergonhado em ter
acreditado em tudo aquilo. Precisava ter de volta tudo o que ficou parado neste
um mês. Precisava de Rose e de todos os seus sonhos. Será que ela entenderia
suas atitudes? Verificou em seu telefone que ela lhe ligara inúmeras vezes e deixara
mensagens. Ele não atendera telefones, não estava com seu celular. Seu chefe,
também lhe telefonara e ele nem retornara as chamadas.
Miguel ligou para Rose e não a
encontrou. Deixou, então, um recado romântico:
-Querida, eu estou de volta. Todas as
minhas dúvidas se acabaram. É você que eu amo e com quem eu quero partilhar
minha vida. Perdoe-me. Beijos.
Era melhor ligar para o tão adorado
chefe, o Alfredão:
- Chefe! Estou de volta. Começo na segunda. Obrigado
por ter ligado.
- “Quem é vivo sempre aparece”. Podemos conversar
ainda hoje. Estou dando um churrasco, com direito a sauna e a piscina. O
Nivaldo já está aqui. Ele me foi extremamente útil em sua ausência.
Miguel sentiu o perigo. Era importante a sua presença
para a garantia de seu emprego. Era a ocasião propícia para conversar com o
chefe e “abrir seu coração”. Seria motivo de risadas por alguns dias, mas
depois tudo seria esquecido. Mas, ele não poderia ir a esse churrasco, pois como
ia esconder o dragão em suas costas. Aquele dragão que “cuspia fogo pelas
ventas”. O chefe não ia entender: seu mais conceituado funcionário com uma
imensa tatuagem nas costas.
-Chefe, eu cheguei agora mesmo. Não vai dar. Amanhã,
vou até o escritório.
- Você é que sabe. Ah! Antes que eu esqueça, Rose
veio nos procurar, saber o que estava acontecendo. Parecia surpresa com a sua
doença. Disse que não estava sabendo de nada. O Nivaldo, aquele colega que
ficou no seu lugar, falou com ela. Tornaram-se grandes amigos, inclusive, ela
está aqui com ele. Foi ele quem a consolou em sua ausência.
- A Rose e o Nivaldo?
- É. O Nivaldo.
Miguel sentiu ciúmes, aquele aproveitador do Nivaldo
estava lhe tirando, ao mesmo tempo, Rose e seu emprego.
- Amanhã cedo, converso com o senhor no escritório. Depois
eu falo com a Rose.
- É. Cuidado, a fila anda... Depois a gente conversa.
Passe bem.
Ele tinha a vida toda pela frente, mas o que fazer
com ela? Aquele Miguel de outrora tinha morrido, ele não tinha coragem de
enfrentar o seu passado. Se não fosse tão covarde, acabaria literalmente com
sua vida. Sentia-se fracassado e infeliz... M O R T O.
-Moço, moço, acorde, você está todo queimado. Vai ter
uma insolação! - um rapaz o sacudia insistentemente.
Abriu os olhos
tentando desvendar o seu redor. Aquela voz o transportara de um outro mundo.
Seus lábios estavam secos e a pele vermelha, sentia-se doente, com náuseas. O
corpo todo doia.
- Você precisa procurar um médico.
- Obrigado. Eu vou pra casa.
Levantou-se da cadeira de praia onde estivera
deitado. Teria sido um pesadelo? Nada aconteceu? O seu mundo não se acabara.
Enquanto procurava as chaves do carro, olhou pelo
espelho e não viu nenhum dragão em suas costas. Seus olhos se voltaram em
direção à praia, pois acabara de ouvir uma gargalhada horrível. Era a cigana,
que da areia contemplava a cena.